No dia 11 de março a Prefeitura de Campinas lançou o “Concurso de Arte Livre e Grafitagem de Campinas”. Segundo as manchetes dos jornais locais, o objetivo é “incentivar o graffiti para combater o vandalismo”. Onde se diz “vandalismo”, leia-se “pichação”.
A iniciativa da Prefeitura de Campinas é louvável, principalmente pela envergadura do evento. São aproximadamente 50 mil reais de investimento, conforme anunciado, com premiação que vai de kit de latinhas de spray até uma quantia de R$ 3.000,00 para o 1° colocado, exposição de trabalhos em outdoor's e ampla divulgação na imprensa local (Saiba mais aqui). Não é todo dia que o graffiti recebe um tratamento deste tipo por parte do poder público. No entanto, o Concurso tem gerado muita polêmica, inflando ânimos de pichadores e grafiteiros da cidade, em função do formato e do objetivo adotados. A iniciativa, bem acolhida pela imprensa e por setores da burguesia campineira (em especial comerciantes e moradores do centro), gerou intenso debate e foi alvo de duras críticas por parte de militantes do hip hop. x
O graffiti alcançou um status tamanho no Brasil e no mundo que é suficiente para que mereça o investimento do poder público como arte, e não como mero instrumento de combate a um delito, no caso a pichação. É muito comum um pichador se envolver no universo do graffiti e acabar abandonando o “pixo”, fosse o contrário não existiriam tantos grafiteiros ex-pichadores. Porém, este é um processo lento e subjetivo, e não automático como muitos pretendem. O discurso usado pelos organizadores do Concurso, explicitando o processo, colocou pichadores contra grafiteiros, o que, ao invés de incentivar, acaba por atrapalhar a militância dos grafiteiros, dificultando em vez de facilitar que o pichador migre para o graffiti. Além do que, o combate ao “vandalismo” é papel da segurança pública e não dos artistas.
Outro ponto a ser refletido é o impacto de um Concurso entre os grafiteiros. A rivalidade é o motor da pichação. O pichador é movido por “ibope” (popularidade), pela adrenalina do risco, pelo “prazer” da agressão, da contravenção e pela disputa com os rivais. O grafiteiro, pelo contrário, é movido pela consciência social, pelo prazer da arte, pela possibilidade de expressão. Ele quer confrontar idéias ou preconceitos e não pessoas ou rivais. O Concurso, ao prever uma premiação e um julgamento dos melhores trabalhos, vai justamente contra a maior vantagem do graffiti em relação ao “pixo”: a confraternização, a socialização. Colocou grafiteiro contra grafiteiro.
Os 50.000 reais anunciados como investimento comprariam cerca de 4.166 latinhas de spray automotivo da marca colorgin (a um custo médio de R$ 12,00 a lata - em Campinas - em cores comuns não-metálicas). Seria possível realizar 10 mostras como a de 17 de julho de 2003 (II Mostra de Graffiti de Campinas) que coloriu os muros da SANASA, onde todas as crews que se inscreveram tiveram seu espaço no muro com kit de tintas cedido pela Prefeitura. Em torno de 50 artistas de rua puderam expor seu trabalho em um dia ensolarado de socialização.
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Os R$ 50.000,00 seriam suficientes para a celebração de 3 ou 4 convênios, como o que havia na Casa do Hip Hop em 2003, garantindo oficinas de Graffiti, MC, DJ e B. Boy (com 4 oficineiros ganhando R$ 800,00 por mês) por um período de 1,5 a 2 anos!
Quem conhece a realidade das ruas de perto sabe bem como funciona a repressão aos pichadores. Em geral, a polícia, quando pega em flagrante, espanca e picha o rosto e o corpo dos pichadores, que são na maioria menores de idade. Todas estas ações, que em tese visam a repressão, pelo contrário, servem de combustível. É como apagar fogo com gasolina. Pra quem cultua e vive do risco, a repressão, da forma como é feita, torna o picho ainda mais instigante...
O poder público não compreende o mundo do “pixo”. As pichações que existiam antes dos anos 90 em Campinas, de conotação política (tipo: abaixo a ditadura! ou diretas já!) ou pessoal (tipo: fulana, eu te amo!) não possuem nenhuma relação com o movimento que acontece atualmente. Eram manifestações isoladas, comparadas com o “pixo” atual. O universo do “pixo” é um mundo paralelo, uma organização com rituais próprios, hierarquia rígida e código de conduta próprio. De tão organizada, se espalhou como uma praga debaixo dos nossos narizes, sob a omissão do poder público. No ponto em que chegou, é difícil imaginar que cesse um dia...
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Esta situação somente será revertida quando o poder público buscar entender as motivações, os caminhos e as razões mais profundas que levam um adolescente chegar ao ponto de se tornar um pichador, se submetendo a exposição dos riscos que a noite apresenta. Porque estes garotos não estão na escola ou trabalhando? Este é um drama que tem raízes sociais. O “pixo” é uma consequência direta do caos urbano e da exclusão social que o capitalismo gerou. Um plano de prevenção deve considerar o trabalho em conjunto da cultura com a assistência social, a educação, a saúde, o departamento de urbanismo, etc., de forma integrada.
É papel do poder público considerar a sociedade como um todo em suas políticas, e não apenas um setor X ou Y. A condição dos garotos pichadores deve ter prioridade sobre os anseios por “limpeza” da burguesia. No ano passado, um garoto morreu após cair de um prédio e não se viu tanta mobilização em torno do problema. Por mais que a questão da limpeza possua a sua legitimidade – devo reconhecer – ela se torna uma questão menor quando o assunto é uma vida humana.
Os pichadores encontram no “pixo” muito do que a sociedade não oferece a eles, como aceitação, auto-estima, identidade, socialização e diversão. É o lugar onde eles alcançam algum reconhecimento. É onde eles desenvolvem um sentimento de pertencimento. Cabe ao poder público e a sociedade “disputar” o destino destes garotos, tratando a questão como um problema social e não como um caso de segurança pública.