A Estação Cultura, o maior patrimônio histórico e cultural da cidade de Campinas, está em perigo. O prédio, ocupado e revitalizado durante a gestão do prefeito Toninho (o Antonio da Costa Santos, do PT, brutalmente assassinado), amarga anos de abandono, com a retirada do funcionamento da Secretaria de Cultura, que atualmente está no 15º andar do Paço Municipal. O governo Helio, sem o consentimento do Condepacc (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico e Cultural de Campinas), autorizou a realização do evento "Campinas Decor" nas dependências do prédio. O Condepacc somente soube do fato quando já estava consumado (os espaços já estavam sendo negociados). O Condephaat (órgão equivalente no nível estadual) sequer foi informado sobre a intervenção no prédio, tendo feito uma vistoria na última quinta-feira (10), após ter recebido denúncias.
Por princípio, nada tenho contra o Campinas Decor. Trata-se de uma mostra, organizada pela iniciativa privada, que expõe produtos e serviços da área de decoração. O problema é a falta de transparência com que o governo negociou o uso do prédio da Estação Cultura, diante do silêncio do Condepacc, que mesmo ao tomar conhecimento do processo, nenhuma providência tomou para proteger o patrimônio público. Se nao existe intenção de causar dano material ao nosso patrimônio, porque o projeto todo não foi apresentado publicamente? Todo este processo me cheira muito mal, pelas razões que exponho a seguir.
Em primeiro lugar, o governo é responsável pelo atual estado de conservação do prédio. Seja pelas intervenções no telhado, para os enfeites de natal, que quebraram telhas e produziram infiltrações, seja pela falta de investimento na sua manutenção. Em segundo lugar, a tese exposta em matéria (leia
aqui) publicada no jornal Correio Popular do domingo (13), de que a prefeitura não possui condições de manter o prédio, não é verídica. Existe previsão de destinação de 15 milhões pelo IPHAN, órgão federal, para o restauro do prédio da Estação Cultura, nos próximos dois anos. Me parece incrível que os "especialistas" do Condepacc temam por um prédio centenário, que atravessou mais de um século, como se ele não pudece aguardar mais dois anos por um restauro digno. No mínimo, a ocupação do prédio pelo Campinas Decor me parece inoportuna. Para além disto, pode comprometer a vinda dos recursos do governo federal, na medida em que venha a descaracterizar o prédio.
O Campinas Decor é feito por uma instituição empresarial privada, cujo objetivo maior é o lucro. Já o governo, por sua vez, deve zelar pelo interesse público, acima do lucro de uma pequena parcela da elite. Caberia ao governo, pela lógica, estipular ao Campinas Decor, com a orientação do Condepacc, o que pode e o que não pode ser feito no prédio ocupado, sinalizando claramente como ele deve ser devolvido. O interesse público, naturalmente, deve prevalecer sobre o interesse privado. O interesse privado operaria exclusivamente onde for conveniente ao interesse público. Não é o que me parece estar acontecendo na Estação Cultura.
A alegação de Daisy Serra Ribeiro, coordenadora da CSPC (órgão da Prefeitura responsável por zelar pelo patrimônio histórico da cidade), e de João Verde, arquiteto, de que as demolições no prédio afetam apenas aquilo que não é "original" no prédio, obedecem a uma concepção em desuso no campo do patrimônio histórico. Qualquer pessoa bem informada sobre os debates em torno do patrimônio sabe que, com esta alegação de interferir naquilo que não é "original," prédios inteiros já viraram entulho. O que é original num prédio que foi construído por etapas? O primeiro tijolo?
O papel do Condepacc e da CSPC deveria ser o de zelar pela preservação do prédio na forma como ele chegou aos dias de hoje e se cristalizou nas memórias do povo campineiro. A mutilação do prédio da Estação Cultura atende a interesses privados do Campinas Decor, contra o interesse público. Com a justificativa de que este ou aquele setor do prédio não estava lá no primeiro momento da sua construção, poderemos assistir, nos próximos meses, a uma severa descaracterização de nosso patrimônio público cultural.
Me preocupa também o futuro do prédio. Esvaziado e abandonado pelo poder público, inserido em uma área central, próxima ao novo Terminal Rodoviário, ele pode ser incluído nos planos de privatização do governo Helio. O PL 29/11, retirado da pauta da Câmara Municipal por pressões populares, prevê privatizações na área da cultura (saiba mais
aqui). As mudanças no prédio podem estar inseridas num projeto que o entregue à iniciativa privada de uma vez por todas.
O Condepacc é um órgão de "notáveis", cujo formato merece ser revisto. Ao contrário de outros conselhos municipais, como o da saúde, no Condepacc não há ampla participação, com acesso a usuários (cidadãos comuns) e movimentos populares de cultura. Os debates são circunscritos a meia dúzia de "técnicos especialistas", que não possuem respaldo popular. Mesmo os conselheiros mais críticos acabam por sucumbir aos interesses do governo. As reuniões, fechadas à população em geral, acontecem em locais e horários de difícil acesso. Em minha opinião, o debate sobre o patrimônio histórico e cultural da cidade deve urgentemente ser apropriado pela população.